O HOMENZINHO
Ele surgiu no topo da colina num trotezinho faceiro, vindo direto na minha direção. O homenzinho vestia chapéu, botas, bombacha e trazia nas mãos um guarda-chuva.Era como um personagem saído do passado. Pensei:
Quem usa um guarda-chuva combinado com chapéu e bombacha?
[if !supportLists]- " [endif]Buenas! Posso chegar?". Perguntou com voz fina.
O homenzinho era na verdade um piá, um guri como chamamos aqui. Não tinha mais do que 10 anos. Tirou o chapéu, limpou is pés e ainda pediu licença prá entrar e olha que ainda estavamos no campo. Impecável! Devo estar sonhando pensei enquanto ele me olhava com um olhar curioso desenhado no rosto claro, a franja suada marcada pelo do chapéu.
- Me chamo Mateus, posso ver os cavalos?", perguntou. Improvisei:
- “Buenas! Se aprochegue!!”
Devo ter soado como uma turista paraguaia ou uma paulista coxinha falando um idioma estranho. Mateus fez que não ouviu e me seguiu até as cocheiras. Apresentei a tropilha.
- Esse é o Ataliba, e esse o Poema, são Manga-larga marchadores, um veio de Minas outro de São Paulo".
Antes que eu pudesse impedir, com desenvoltura entrou na baia. Mal alcançava o dorso dos bichos, mas passou a mão com segurança na anca do Tordilho. Seguimos.
"Essa é a crioula Bala".
" Uma gateada!".
"Sim, e aqui a Splash, uma Apaloosa, cavalo de indio de filme de cowboy, vc gosta?".
" É´ uma Quarto de Milha", retrucou, enquanto olhava a égua por cima da mureta, mal equilibrado nas pontas dos pés.
Fechando a revista apresentei o Apolo e a potranca Pocotó do compadre Enio. Então Mateus disparou:
" Posso trabalhar aqui?".
Confesso que pensei, vou contratar agora mesmo! O piá sabe mais de cavalo do que todos nós. Mas a razão falou mais alto, só me faltava essa agora, um processo por exploração de trabalho infantil, já não bastasse todos os oportunistas que passaram pelo estábulo e foram daqui direto ao Ministério do trabalho, com casos minuciosamente roteirizados por advogados de porta de sindicato. Teve um safado que declarou que correu perigo de vida enfrentando um leão baio do tamanho de um cachorro grande… Só se estava no rótulo do que andava tomando!
Outro se vendeu como um Franciscano. Amava os animais e havía estudado doma “semi-racional”, Na época o "semi" ficou soando na minha cabeça. Ou é racional ou irracional. Era irracional. Jogou fora o gato Américo que lhe roubou um salchichão. Detalhe: vivo dentro dentro de um saco de lixo.
Por sorte, recuperamos o Américo que hoje está aqui ronronando no meu colo e mandamos o Franciscano pro inferno. O que pode ser mais covarde do que maltratar um bicho?
Criança? Sim, criança. Ele continuava sua inspeção pelo estábulo.
“Acho bonito aqui, é caprichado.”, mas reclamou da altura do cocho da alfafa.
“Meu pai me disse que essa não é uma boa posição para o pescoço enquanto comem, pode dar cancer...".
"Todo mundo que entra aqui tem uma teoria diferente sobre tudo” respondi, sem conseguir conter o sorriso, pensando que todo mundo também tem teorias sobre cancer.
Desatamos a falar dos bichos. Me contou que tem seu proprio cavalo, se chama “Colono”. Bom nome!! De longe melhor do que Splash…
Contou como cuidava do Colono, da baia improvisada no vizinho, a dieta, o tipo de rotina e quando eu entrei no assunto de doma ficou quieto. Alguém chegou com água quente e com o mate encilhado. Então Mateus me perguntou se eu já havia escutado algo sobre a doma de Monty e quase engasguei. O mundo está caminhando prá melhor! O piá conhece o trabalho de “horsemanship”do Monty Roberts! Finalmente uma luz no final do túnel! Sinal de um Rio Grande evoluindo de certas barbáries à práticas mais gentis com seus animais?
A história do Monty é linda, nasceu montado num cavalo na região de Salinas na California, a mãe dava aulas de hipismo e o pai era um destes cowboys que viajava em rodeios pelo país. O livro que conta sua vida vale a leitura, a familia morava em um centro hipico que foi desativado durante a 2ºguerra para alojar nas baias as familias de japoneses que moravam na California transformadas em “prisioneiras de guerra”, depois do ataque a Pearl Harbor.
Ainda criança, Monty fazia duble de corpo para atrizes em cavalgadas de far-wests em Hollywood vestindo perucas e figurinos cheios de bordados, mas ajudando um bolão no orçamento da família.
A história é linda e conta como o piá viajando com o pai pelo Arizona em busca de mustangues selvagens para os rodeios, passava a noite em claro nos acampamentos observando de longe os cavalos soltos e assim aprendeu a linguagem de comunicação entre éguas e potros. A partir das suas percepções durante anos, Monthy desenvolveu e testou uma forma revolucionária de se comunicar com os cavalos e construir uma relação de coperação sem o uso de mal-tratos e submissão. Isso lhe rendeu reconhecimento internacional, fortuna, uma inacreditável relação de amizade com a monarquia inglesa mas também uma guerra com o pai cowboy, que só conhecia uma forma de lidar com os animais, a violência.
No Rio Grande, até hoje muitos cavalos são domados na base do quebra-queixo, mas vou poupar o leitor dos detalhes.
Terminamos o mate e Mateus perguntou a hora, lhe ofereci uma carona. Enquanto fazíamos o caminho até a porteira, aproveitei prá investigar sobre a vizinhança. Recém chegada por aqueles campos, quería entender um pouco sobre quem mora dos outros lados da cerca recém plantada com mestres e trembelhos ainda verdes. Mateus me contou dos vizinhos com detalhes que eu nem precisava saber e com a eficiência de radio-peão. No caso, radio-piá.
Depois de um silêncio disparou com um sorriso lavado.
" Penduramos o Colono numa árvore prá quebrar o queixo dele".
HORROR!
Nosso romance terminou na hora. Abri a porta do carro:
" Desce Mateus! Vc fica aqui mesmo, preciso voltar pro galpão.
E não esquece o puto guarda-chuva!".
Maldita cultura!